quarta-feira, novembro 18, 2009

Aventuras com as energias renováveis

Texto de Luís de Sousa, aluno de doutoramento do IST, publicado originalmente em inglês no fórum European Tribune.

Recessão. Taxas de juro coladas ao chão. Desemprego opressivo. Que melhor altura para investir em bens tangíveis? Foi esta lógica que me levou a considerar investir em painéis solares fotovoltaicos. Meses atrás comecei a estudar o assunto por forma a tornar-me microprodutor.

Coincidência ou não, encontrei pouco depois um familiar que havia regressado de uma comissão de trabalho em Angola e criara cá uma companhia que instala sistemas de microgeração solar. Embarquei então numa interessante aventura que está longe de terminar.

Portugal é um belo lugar, na ponta mais ocidental da Europa, com uma longa costa atlântica, uma orografia rica e um clima clemente. Mais sol só mesmo no deserto. Ainda assim, este estado importa 85% da energia que consome, com os combustíveis fósseis importados a 100%. Um défice externo na ordem dos 10% do PIB deve-se em grande parte a esta pesada factura energética.

Após sucessivas tentativas falhadas (por razões diversas) para basear a geração eléctrica nacional, primeiro no Nuclear, depois no Carvão e mais recentemente no Gás Natural, os governos começaram a virar atenções para as energias renováveis internas no final da década de 1990. Vários programas têm sido levados a cabo, providenciando tarifas especiais para projectos licenciados a grandes investidores (especialmente energia Eólica e Minihídrica, com algumas tentativas no Fotovoltaico de larga escala).

Em 2006 a rede eléctrica nacional foi aberta aos pequenos investidores, que até esse ponto tiveram que tratar eles próprios de armazenar e balancear a energia que produziam. Hoje existe legislação que determina uma série de regras para a ligação de sistemas de microgeração à rede eléctrica, incluindo:

  • para se ligar um sistema fotovoltaico à rede é obrigatória a instalação de um sistema térmico de aquecimento de águas;

  • cada sistema microgerador só pode alimentar à rede um máximo de 3.68 quilowatts a qualquer momento;

  • cada quilowatt-hora alimentado à rede é pago a 0.61 € durante os primeiros 6 anos de operação, a 0.30 € do sétimo ao décimo-segundo ano de operação e a preço médio de custo daí em diante;

  • as licenças de ligação à rede são emitidas em pacotes de 1000 unidades, totalizando 3.68 megawatts de capacidade instalada adicional; o período de emissão de licenças é aberto de forma ad hoc e fecha assim que as 1000 licenças estiverem atribuídas.

Os 60 cêntimos por quilowatt-hora representam cerca de 4 vezes o actual custo médio de geração – 15 cêntimos. Os utilizadores estão no entanto a pagar apenas 12.6 cêntimos, sendo a diferença deixada de presente às gerações futuras.

O pacote que o meu familiar projectou para o meu caso é composto por 18 painéis de 220 watts de potência cada, um painel térmico de aquecimento de água com um depósito de 200 litros, o inversor de corrente (que também dissipa a potência acima dos 3.68 watts) e a instalação. A instalação inclui a ligação das tubagens de água quente ao sistema da casa. Tudo isto soma a cerca de 20 000 € mais IVA, que para este tipo de investimentos se cifra em 12%.

Os painéis fotovoltaicos a instalar são produzidos na fábrica de Moura [o seu sítio web parece estar “em construção”]. Esta fábrica estará hoje a produzir o estado da arte das células fotovoltaicas, fornecendo fabricantes de painéis de qualidade superior na Alemanha e no Japão.

O telhado tem duas águas, uma a Nascente e outra a Poente, o que não é exactamente a melhor das configurações. Mas sendo o mais alto num raio de várias centenas de metros, e a esta latitude, permite ainda assim um investimento rentável. A água a Nascente tem sol até às 4 horas da tarde durante metade do ano; a água a Poente, onde serão montados a maioria dos painéis, deverá permitir a geração à potência máxima a partir das 11 horas da manhã. A factura eléctrica varia de 110 quilowatts-hora no Verão a 150 quilowatts-hora no Inverno. O sistema deverá gerar entre oito (Verão) e duas vezes (Inverno) esses valores.

As perspectivas neste momento são para que o sistema se paga a si próprio nos primeiros 5 anos de operação. Considerando o ambiente económico presente, estas expectativas são muito interessantes, e com a dependência que Portugal tem das importações, os 15 cêntimos por quilowatt-hora irão certamente subir, transformando este bem num importante gerador de receita.

Antes de continuar gostaria de deixar algumas notas em relação às regras do jogo. Em primeiro lugar, pagar IVA sobre um produto nacional que permitirá equilibrar a economia deste estado é no mínimo algo de estranho. Depois, a limitação da potência a alimentar à rede não tem grande lógica; a potência instalada para maximizar o investimento passará em muitos casos os 3.68 quilowatts, o que resulta num excesso de energia dissipada durante as horas de pico, em especial durante o Verão.

O limite de 1000 licenças também não parece muito em contacto com a realidade, dado que 3.68 megawatts é apenas um pouco mais que a potência de uma única turbina eólica industrial. Existem certamente questões de balanceamento de carga a considerar, mas a energia solar é relativamente fácil de prever, mesmo no longo prazo (especialmente em Portugal onde o Verão resulta em dias a fio sem nuvens). Um sistema mais sensato poderia conseguir resultados semelhantes, por exemplo limitando a capacidade instalada por habitação ou simplesmente reduzindo a tarifa especial.

Com o projecto consolidado no papel passou-se então ao processo de licenciamento. Este é constituído pelos seguintes passos:

  • pré-registar on-line os dados técnicos;

  • submeter candidatura durante o período de licenciamento;

  • instalar a infra-estrutura nos 120 dias seguintes à aprovção da candidatura;

  • submeter o sistema a uma inspecção por parte de uma entidade licenciada para o efeito.

O licenciamento é efectuado por via electrónica no sítio com o nome irónico RenovaveisNaHora.pt. Algures em Outubro um novo período de licenciamento foi anunciado para começar dia 2 de Novembro ás 10 horas. O pré-registo foi efectuado e a partir daí foi ficar à espera. O meu familiar avisou-me que existiam cerca de 5000 pré-registos e que poderiam existir problemas a submeter a candidatura, mas na altura pensei que tudo haveria de correr sem complicações.

Na manhã do dia 2 de Novembro tentei aceder ao sítio electrónico, por volta das nove e meia. Nada. O outro lado estava morto. Tentei usar o comando ping, seguir a ligação com um comando trace, mas silêncio foi tudo o que obtive. Trabalho presentemente com uma ligação de banda-larga 3G, que entre outras coisas, me permitiu descarregar uma imagem do Ubuntu numa questão de minutos. Após uma hora a tentar continuamente desisti.

Tentei várias vezes durante esse dia, mas sempre sem sucesso. Na manhã do dia 3 consegui finalmente entrar no sítio. Para meu total espanto o anúncio seguinte estava afixado:

O período de licenciamento aberto dia 2 de Novembro às 10:00 fechou às 11:04, após o número máximo de licenças ter sido atribuído.

Há algo de terrivelmente errado nesta pintura. Toda a informação que tenho aponta para o facto de o servidor ter estado desligado durante esse período, ou pelo menos num estado de negação de serviço [do inglês Denial of Service - DoS]. Sendo assim, como é possível terem sido atribuídas cerca de 1000 licenças? Mais tarde conferenciei com o meu familiar (que para além do meu projecto não conseguiu submeter outras 4 candidaturas) indicando-lhe que muito dificilmente essas candidaturas não teriam sido registadas on-line.

Dias mais tarde, após alguns inquéritos junto das fontes normalmente bem informadas, começámos a ter uma ideia mais clara da situação. Diz-se que metade das licenças foram atribuídas a dois dos maiores bancos do país e que mais algumas centenas foram parar às mãos de grandes investidores institucionais. Há histórias de horror a circular sobre call-centers inteiros mobilizados para gerar tráfego, bloqueando o acesso ao homem comum.

Não sei simplesmente o que fazer. Por um lado não estou disposto a entrar em qualquer esquema ilícito que possa existir para obter uma licença, por outro, a janela para fazer este investimento não estará aberta para sempre, com previsões de subida das taxas de juros já para a próxima Primavera.

Este é sem dúvida um belo sítio para se viver.